Da utopia à revolta<br>Da indignação à revolução

Miguel Urbano Rodrigues

ste início do sé­culo XXI será re­cor­dado como uma das épocas mais trá­gicas e belas da His­tória da Hu­ma­ni­dade.

Mas as ac­tuais ge­ra­ções, quando co­mentam os efeitos da crise mun­dial que hoje atinge a quase to­ta­li­dade dos povos e me­ditam sobre a onda de bar­bárie que varre o pla­neta, são em­pur­radas para con­clu­sões pes­si­mistas. O que captam do tempo his­tó­rico em mo­vi­mento é so­bre­tudo o lado mais som­brio.

In­cutir um sen­ti­mento de fa­ta­lismo nas massas é ob­jec­tivo per­ma­nente no mas­sacre me­diá­tico

Image 10177

O homem re­a­lizou nas úl­timas dé­cadas con­quistas pro­di­gi­osas, ini­ma­gi­ná­veis em vida dos nossos avós. Já vi­ajou até à Lua, lança sondas a pla­netas dis­tantes mi­lhões de qui­ló­me­tros da Terra, sonha com a fun­dação de ci­dades ter­res­tres no Es­paço, rompe a cada dia as fron­teiras do saber, pro­longou a es­pe­rança de vida.

Foi en­tre­tanto breve o tempo das ilu­sões quando em l945 se ca­laram os ca­nhões após o es­ma­ga­mento da Ale­manha nazi. A es­pe­rança de que a Hu­ma­ni­dade iria en­trar numa era de paz com as guerras ba­nidas para sempre era utó­pica. Desde então mor­reram mais de 50 mi­lhões de pes­soas em guerras cri­mi­nosas e em fomes cí­clicas.

A de­si­gual­dade so­cial au­mentou, apro­fundou-se o fosso entre os países de­sen­vol­vidos e os mais po­bres. Meio mi­lhar de mul­ti­bi­li­o­ná­rios acu­mulou for­tunas co­los­sais, al­gumas (como as de Carlos Slim e Bill Gates) su­pe­ri­ores a me­tade do PIB por­tu­guês. Gi­gan­tescas trans­na­ci­o­nais im­põem a sua von­tade aos go­vernos de es­tados da África, da Ásia e da Amé­rica La­tina.

A vi­o­lência as­sume hoje ca­rácter en­dé­mico em am­plas re­giões do pla­neta. Um im­pe­ri­a­lismo co­lec­tivo he­ge­mo­ni­zado pelos EUA pro­move agres­sões para se apossar dos re­cursos na­tu­rais de povos do an­tigo Ter­ceiro Mundo. Isso acon­teceu no Iraque, na Líbia, no Afe­ga­nistão.

Neste úl­timo país os EUA co­metem crimes que trazem à me­mória os das SS hi­tle­ri­anas.

A guerra afegã está per­dida. No corpo de ofi­ciais ins­talou-se uma men­ta­li­dade de ma­tizes fas­ci­zantes. Mas o pre­si­dente Obama pro­mulga a lei de au­to­ri­zação da Se­gu­rança Na­ci­onal que per­mite a prisão de qual­quer ci­dadão sus­peito de con­tactos com «ter­ro­ristas».

E a es­ca­lada da vi­o­lência pros­segue. O go­verno ne­o­fas­cista de Is­rael tenta ar­rastar o seu grande aliado para uma agressão ao Irão. Obama he­sita. Mas apenas por estar cons­ci­ente de que o en­vol­vi­mento numa nova guerra na Ásia antes de No­vembro po­deria pre­ju­dicar de­ci­si­va­mente a sua re­e­leição.

Uma grande parte da hu­ma­ni­dade, de­sin­for­mada, não con­segue des­montar os me­ca­nismos da men­tira.

 

Por­tugal

 

A crise, nas­cida nos EUA, é uma crise do ca­pi­ta­lismo.

Longe de estar su­pe­rada, agrava-se porque é es­tru­tural e não cí­clica.

Alas­trou pelo mundo e, como era ine­vi­tável, con­ta­minou a União Eu­ro­peia. As re­ceitas para a en­frentar são aqui di­fe­rentes das uti­li­zadas nos Es­tados Unidos porque o dólar é ainda quase a moeda uni­versal e o Banco Cen­tral Eu­ropeu não tem a pos­si­bi­li­dade de emitir sem con­trolo bi­liões de euros numa es­tra­tégia fi­nan­ceira de com­bate à crise. Mas aqui, como do outro lado do Atlân­tico, o ob­jec­tivo do poder foi acudir aos res­pon­sá­veis e evitar a fa­lência da grande banca e de gi­gan­tescas trans­na­ci­o­nais. A fac­tura dos crimes da Fi­nança é co­brada às ví­timas, isto é, aos tra­ba­lha­dores.

País pe­ri­fé­rico, sub­de­sen­vol­vido, semi co­lo­ni­zado, Por­tugal está há muito des­go­ver­nado por forças po­lí­ticas que se sub­metem do­cil­mente às me­didas im­postas pelo im­pe­ri­a­lismo e as aplaudem.

As san­gues­sugas do ca­pital, ac­tu­ando em nome da Co­missão Eu­ro­peia e do FMI, pro­clamam que o povo tra­ba­lhador deve sa­cri­ficar-se, apertar o cinto, cum­prir todas as exi­gên­cias da cha­mada troika para re­cu­perar a con­fi­ança dos «mer­cados».

Um sis­tema me­diá­tico per­verso e cor­rupto entra no jogo. Emite crí­ticas ir­re­le­vantes ao fun­ci­o­na­mento da en­gre­nagem, si­mu­lando uma in­de­pen­dência ine­xis­tente.

O coro dos epí­gonos, pe­rante o avo­lumar da in­dig­nação dos tra­ba­lha­dores, teme que ela as­suma pro­por­ções tor­ren­ciais, e re­pete que fe­liz­mente somos um povo de «brandos cos­tumes», di­fe­rente do grego, um povo que com­pre­ende a ne­ces­si­dade da «aus­te­ri­dade», cons­ci­ente de que so­mente dela pode nascer a su­pe­ração da crise.

In­cutir um sen­ti­mento de fa­ta­lismo nas massas é ob­jec­tivo per­ma­nente no mas­sacre me­diá­tico.

Que fazer?

É pelos ca­mi­nhos da luta que ela pode ser en­con­trada.

É ne­ces­sário com­bater com fir­meza a ali­e­nação que atinge uma grande par­cela da po­pu­lação. Com­bater a ideia falsa de que vi­vemos uma si­tu­ação de­mo­crá­tica, porque o re­gime par­la­mentar foi le­gi­ti­mado pelo voto po­pular é uma exi­gência his­tó­rica, tal como a des­mon­tagem das cam­pa­nhas que con­denam as greves como anti-pa­trió­ticas e as ma­ni­fes­ta­ções de pro­testo como ini­ci­a­tivas ro­mân­ticas.

Ajudar mi­lhões de por­tu­gueses a com­pre­ender como foi pos­sível que 37 anos após uma Re­vo­lução tão bela e pro­funda como a de Abril de 74 o País, de tombo em tombo, vol­tasse a ser do­mi­nado pela classe que o oprimia na época do fas­cismo tornou-se uma ta­refa re­vo­lu­ci­o­nária.

Como foi pos­sível o re­fluxo? A re­lação de forças que per­mitiu as grandes con­quistas re­vo­lu­ci­o­ná­rias du­rante os go­vernos do ge­neral Vasco Gon­çalves não se al­terou de um dia para o outro.

A base so­cial do Par­tido So­ci­a­lista não deve ser con­fun­dida com a do PSD e do CDS. Mas ajudar a com­pre­ender que a di­recção do PS, co­lec­ti­va­mente, tem ac­tuado cons­ci­en­te­mente a ser­viço da di­reita é muito im­por­tante. Na quase glo­ri­fi­cação de Só­crates no Con­gresso da­quele par­tido, o PS pro­jectou bem a sua imagem. O se­cre­tário-geral tinha con­du­zido o País à beira do abismo com a sua po­lí­tica ne­o­li­beral de vas­sa­lagem ao ca­pital, mas foi ali acla­mado como herói e sal­vador.

Re­no­varam-lhe a con­fi­ança e ele afundou mais o País. De­pois ocorreu o es­pe­rado. O fun­ci­o­na­mento dos me­ca­nismos da di­ta­dura da bur­guesia de fa­chada de­mo­crá­tica co­locou a ali­ança PSD-CDS de novo no go­verno.

Uma par­cela pon­de­rável do povo acre­ditou que vo­tava por uma mu­dança. Na re­a­li­dade, li­mitou-se a ac­ci­onar o ro­dízio da al­ter­nância no go­verno de par­tidos que com­petem na ta­refa de ser­virem os in­te­resses do ca­pital do qual são ins­tru­mentos sub­missos.

Hoje, cabe per­guntar: como pode ter che­gado a pri­meiro-mi­nistro uma cri­a­tura como Passos Co­elho? As suas pa­la­vras e actos sus­citam di­a­ri­a­mente tor­rentes de co­men­tá­rios e in­ter­pre­ta­ções dos ana­listas de ser­viço nos media. O homem é um ser de uma in­di­gência mental tão trans­pa­rente que até in­te­lec­tuais da di­reita como Pa­checo Pe­reira re­co­nhecem o óbvio.

O povo acom­panha, an­gus­tiado, as cenas da farsa dra­má­tica. Há dois anos que a sua res­posta à po­lí­tica que está a des­truir o País não pára de crescer. Mas é ainda muito in­su­fi­ci­ente. As grandes ma­ni­fes­ta­ções de pro­testo e as greves (a geral e as sec­to­riais) so­mente podem abalar o sis­tema se a luta ad­quirir um ca­rácter per­ma­nente e di­ver­si­fi­cado, nas fá­bricas, nos portos, nos trans­portes, nas es­colas, na Ad­mi­nis­tração, em múl­ti­plos lo­cais de tra­balho, nas ruas.

É evi­dente que as con­di­ções sub­jec­tivas não são em Por­tugal as da Grécia cujos tra­ba­lha­dores, ca­lu­ni­ados, se batem hoje pela Hu­ma­ni­dade.

Que fazer? – in­sisto.

O es­forço do PCP na luta contra o imo­bi­lismo e a ali­e­nação como con­tri­buição in­dis­pen­sável para o re­forço da cons­ci­ência de classe e o nível ide­o­ló­gico da classe tra­ba­lha­dora as­sume hoje – re­pito – ca­rácter de ta­refa re­vo­lu­ci­o­nária.

A bur­guesia tudo faz para es­ti­mular o pes­si­mismo. O Go­verno e o pa­tro­nato sabem que a con­vicção de que não há al­ter­na­tiva para a «aus­te­ri­dade» os fa­vo­rece. Pro­clama que a luta de massas so­mente agra­varia a crise.

A ati­tude po­si­tiva deve ser a oposta, a op­ti­mista, a que for­ta­lece o es­pí­rito de luta. Não se com­bate o de­sem­prego, a po­breza, a su­pressão de con­quistas so­ciais, ce­dendo ao medo.

A luta do povo por­tu­guês é in­se­pa­rável da luta de ou­tros povos que mundo afora são, como o nosso, ví­timas de po­lí­ticas si­mi­lares do im­pe­ri­a­lismo ou ainda mais cruéis e de­su­manas.

É útil des­mas­carar a mons­tru­o­si­dade das agres­sões a países da Ásia e da África e lem­brar que, nas con­di­ções mais ad­versas, os povos do Iraque, do Afe­ga­nistão, da Pa­les­tina, da Líbia, entre ou­tros, re­sistem e se batem contra a bar­bárie im­pe­ri­a­lista.

É pre­ciso lem­brar que a luta dos povos é pla­ne­tária. A nossa glo­ba­li­zação não é a deles. En­quanto a maré desce em al­gumas zonas da Terra, sobe nou­tras.

É pre­ciso lem­brar que o povo cu­bano, hos­ti­li­zado pela mais po­de­rosa po­tência do mundo, alvo de uma guerra não de­cla­rada, de­fende há meio sé­culo a sua re­vo­lução com co­ragem es­par­tana.

É pre­ciso lem­brar que na Amé­rica La­tina os povos da Ve­ne­zuela bo­li­va­riana, da Bo­lívia e do Equador apontam ao Con­ti­nente o ca­minho da luta contra o ca­pi­ta­lismo pre­dador com o apoio ma­ciço dos tra­ba­lha­dores e da massa dos ex­cluídos.

É útil lem­brar que foram as grandes re­vo­lu­ções que con­tri­buíram de­ci­si­va­mente para o pro­gresso da Hu­ma­ni­dade.

A bur­guesia fran­cesa apu­nhalou em 1792 a Re­vo­lução por ela con­ce­bida e di­ri­gida. Uma lenda negra foi for­jada para a sa­ta­nizar e lhe colar a imagem de um tempo de hor­rores e vi­o­lência. Mas, trans­cor­ridos mais de dois sé­culos, é im­pos­sível negar que a Re­vo­lução Fran­cesa ficou a as­si­nalar uma vi­ragem ma­ra­vi­lhosa na ca­mi­nhada da Hu­ma­ni­dade para o fu­turo.

É pre­ciso, é útil lem­brar que o mesmo ocorreu com a Re­vo­lução Russa de Ou­tubro de 1917. O im­pe­ri­a­lismo fes­tejou como vi­tória me­mo­rável a reim­plan­tação do ca­pi­ta­lismo na pá­tria de Le­nine. Mas não há ca­lúnia nem fal­si­fi­cação da His­tória que possa apagar a re­a­li­dade: as grandes con­quistas so­ciais dos tra­ba­lha­dores eu­ro­peus no sé­culo XX sur­giram como he­rança in­di­recta da Re­vo­lução Russa, a mais pro­gres­sista da His­tória. Foi o medo do so­ci­a­lismo e do co­mu­nismo que forçou a bur­guesia na Eu­ropa a con­formar-se com con­quistas como a jor­nada de 8 horas, as fé­rias pagas, o 13.º sa­lário que se tudo faz hoje, de­sa­pa­re­cida a URSS, para su­primir.

Em Por­tugal é pre­ciso e pos­sível re­cusar o pes­si­mismo, que leva a baixar os braços, à inércia, é in­dis­pen­sável re­as­sumir a es­pe­rança que em­purra para o com­bate e a vi­tória.

Em 1383 e em 1640, quando o País es­tava de rastos e tudo pa­recia afundar-se, o povo por­tu­guês de­sa­fiou o im­pos­sível apa­rente e venceu.

É pre­ciso re­cordar que, após quase meio sé­culo de fas­cismo, o povo por­tu­guês foi su­jeito de uma grande re­vo­lução que na Eu­ropa Oci­dental re­a­lizou con­quistas so­ciais mais pro­fundas do que qual­quer outra desde a Co­muna de Paris.

Vi­vemos um tempo de pe­sa­delo. No fluxo e re­fluxo da His­tória, os opres­sores do povo estão no­va­mente en­cas­te­lados no poder. Mas é útil lem­brar que as se­mentes de Abril so­bre­vi­veram à contra-re­vo­lução. E elas vol­tarão a ger­minar nos campos e nas ci­dades, lan­çadas pelos tra­ba­lha­dores em marcha pelas grandes ala­medas em lutas vi­to­ri­osas.

Trans­formar no quo­ti­diano em re­a­li­dade a pa­lavra de ordem «a luta con­tinua» é, mais do que um dever, uma exi­gência da His­tória.



Mais artigos de: Temas

Uma arma do patrão

O di­vi­si­o­nismo na ac­ti­vi­dade sin­dical é coisa an­tiga. Antes do 25 de Abril, du­rante o seu exílio em Paris, Mário So­ares tentou pro­mover, na ci­dade de Ma­drid, um en­contro de ac­ti­vistas ban­cá­rios por­tu­gueses, tendo sido en­car­re­gado dos con­tactos o sin­di­ca­lista Mário Pina Cor­reia, li­gado aos meios ca­tó­licos.

Não sa­bemos do su­cesso ou in­su­cesso de tais con­tactos. É pro­vável que al­guns ban­cá­rios, não tendo efec­tuado tal des­lo­cação, fi­cassem, mercê desse con­tacto, não só li­son­je­ados com a de­fe­rência, como en­ga­jados aos pro­pó­sitos do se­cre­tário-Geral do PS em cindir o mo­vi­mento sin­dical, como mais tarde veio a ser con­fir­mado.